Poetas do mundo, uni-vos!

Dois poetas-escritores, cada qual com seu estilo. Em comum, a palavra certeira, cortante e musical. Nomes aos dois:

Daniel Gatti, 21 anos, bibliotecário e músico (Rockeiro, mas não ortodoxo). Começou escrevendo letras de músicas depois se aventurou por crônicas, poemas e frases sem contexto.


O Espantalho

O sol voltou para o lugar onde esteve um dia antes à mesma hora e ele logo abriu os olhos e colocou-se em pé em frente ao espelho. Sua aparência costuma ser muito importante, não por vaidade, mas por depender dela que tudo ocorra conforme seus planos. Desalinhou um pouco as barras da calça e inverteu dois botões da camisa enquanto tentava fazer aparecer tanto quanto possível a palha seca que se desmanchava peito a fora. Hoje seria preciso caprichar bastante, e assim o fez o Velho Espantalho. Antes de sair de casa, como todos os dias, colocou sobre a língua duas sementes e as engoliu com dois goles da água do seu regador enferrujado.
Saiu do seu abrigo e pôs-se a caminhar vagarosamente, ainda que com passos decididos. Talvez caminhasse tão vagarosamente porque sabia que nada o surpreenderia, nem desviaria do caminho o Velho Espantalho. Seguia com olhar atento à coisa alguma, ou seja, a tudo que sobrou. Por vários passos o caminho seria igual, o chão de terra batida sem nada crescendo dele, como o próprio espantalho havia providenciado deixar num dia de paixão, ou talvez de fúria. Decidiria isso quando soubesse a diferença, se é que há. O fato é que o caminho, e tudo em volta dele era igual até onde a vista alcançava, e ele estava tão certo disso que não se preocupava em olhar para nada além do único ponto diferente na paisagem, uma espécie de poleiro suspenso por duas grandes toras de madeira, em que havia apoio para os braços e para o queixo. Em frente ao seu “altar” um único ramo verde de uma flor qualquer se projetava pra fora da terra.
Antes de colocar-se em sua rotineira posição dolorosa, ensaiou mais uma vez seu sorriso mórbido típico de um espantalho competente, mirando-se sem sucesso na ferrugem do regador. Embora não tenha enxergado o próprio rosto ele sabia exatamente como deveria estar e sabia que estava. Isto resolvido, apoiou primeiro as mãos, depois o queixo, tirando completamente as pernas do chão para balançarem sem sincronia.
Logo apareceram os corvos e ele se ria deles. Inofensivos corvos. O que poderiam fazer os corvos? No entanto eles sempre apareciam, voavam em volta dele, fitavam-no, desafiavam-lhe a coragem pousando sobre os seus ombros, e ele se ria dos corvos, mas apenas internamente, pois não deveria modificar seu sorriso mórbido típico de um espantalho competente. E ficava lá o Velho Espantalho. Os corvos não.
Eis que surge a outra ave, a que não vem todos os dias e ainda assim é a mais expectante. A pequena ave de ameaçadoras penas coloridas, o Rouxinol. Como sempre que vem, embora não venha sempre, o Rouxinol pousou no ramo de uma flor qualquer e começou a cantar como se não pudesse evitar. E o Velho Espantalho sofria. Tanto quanto o Rouxinol cantava o Velho Espantalho sofria. Era para ele que o Rouxinol cantava e ele sabia disso. A voz do Rouxinol entrava pelos ouvidos do Velho Espantalho e saía pelos olhos. O Rouxinol tinha certeza de que devia continuar cantando não importando o quão mais mórbido se tornava o sorriso do Velho Espantalho, e cantava até gastar todas as suas canções.
A partida era sempre breve. O Rouxinol não permanecia pousado no ramo de uma flor qualquer senão para cantar. E logo assim que ele foi embora o espantalho se recompôs como pode, abandonou sua posição de batalha, pisou novamente no chão, e engoliu novamente duas sementes com a ajuda da água do seu regador, agora seco. Antes de voltar ao seu abrigo ele regou o ramo de uma flor qualquer com uma lágrima, uma gota de suor e uma gota de saliva.
O sol voltava para o lugar onde estava ontem à mesma hora, e o Velho Espantalho voltava para o seu abrigo a tempo de fechar os olhos.

4 comentários:

Márcia

Nossa, que conto angustiante, meio escuro. Achei muito bem escrito, tem passagens muito boas. Parabéns ao autor.

Drika

Achei o texto muito bom e cheio de possíveis interpretações diferentes. Realmente está de parabéns

Miguel

Muito bem escrito, meio macabro, gostei bastante.

Anônimo

qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência, certo?